segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Sobre Raças Humanas

Desde a Antigüidade, a mentalidade ocidental convive com a idéia de que os seres humanos estão divididos em raças, mas foi no decorrer do século XIX, quando os países europeus necessitavam justificar seus projetos de expansão imperialista, que uma grande parte dos seus recursos intelectuais estiveram mais empenhados em definir e hierarquizar as raças que compõem nossa espécie.

Para classificar a variedade de fenótipos humanos, muitos cientistas trabalharam exaustivamente e sua influência deu credibilidade à afirmação de que os brancos de origem européia ocupariam os estágios mais elevados do desenvolvimento, em detrimento dos não-brancos, invariavelmente identificados com o atraso.

Muitas pessoas ganharam celebridade ao expor o resultado de suas pesquisas que, de alguma forma, reforçavam um suposto determinismo biológico aplicado às sociedades humanas, um darwinismo social. Para auferir crédito às asserções, executavam tendenciosamente análises da anatomia de grupos humanos, utilizando, inclusive, instrumentos da antropologia criminal da época, como a craniometria por exemplo, para classificar os povos e estabelecer correlações entre aparências físicas e aptidões.

A ciência do século XIX dava ao racismo o fundamento que lhe permitia justificar a escravização criminosa de milhões de africanos e o autorizava a contradizer de modo convincente o 1º artigo da "Declaração Universal dos Direitos do Homem" de que os seres humanos nascem livres e iguais.

Entre os resultados práticos da noção de que a humanidade se divide em raças, e que algumas são superiores e outras inferiores, está o extermínio de 6 milhões de judeus pelos nazistas nas décadas de 1930 e 1940.

Entretanto, com o progresso da genética e da biologia molecular, os biólogos e antropólogos observaram que nenhum gene humano é específico de uma raça e que todas as populações têm mais ou menos os mesmos genes. As suas conclusões são de que nem a genética e nem bioquímica fornece qualquer subsídio para justificar a existência do conceito "raças humanas". Pelo contrário, afirmou-se em seu lugar, que a espécie humana é essencialmente uma só, o que municiou a ciência para atestar com absoluta segurança que as bases conceituais das afirmações anteriores não têm qualquer valor.

Assim, logo depois da Segunda Guerra Mundial, portanto após a derrota de Hitler e de suas idéias, foram realizados encontros, com o apoio institucional da Unesco, em que participaram cientistas sociais e geneticistas, os quais, diante das evidências, decidiram elaborar a "Declaração Sobre Raça" em que aparecia a afirmação de que "raça é menos um fato biológico do que um mito social".

Desde então, alguém que defenda tal coisa corre o risco de ser visto como quem procura chifre em cabeça de cavalo, porque a evolução da pesquisa científica alcançou um outro paradigma: há uma única raça humana. Como conseqüência desse progresso, a discriminação dos não-brancos deixou de ter respaldo científico e passou a ser vista como um produto da ignorância.

Apesar de que esse progresso da ciência contemporânea não é contínuo, ele tem alguns retrocessos, um exemplo foi a publicação em 1994 de "A curva do sino" (The Bell Curve) em que os autores, sem apresentar nada de novo, tentavam demonstrar a inferioridade nata dos negros através do cruzamento de estatísticas geradas por testes de inteligência. Seus resultados são tão absurdos que a simples citação de alguns nomes de negros que se destacaram no cenário intelectual, como Cheik Anta Diop ou o nosso Milton Santos, já seria suficiente para jogar por terra os seus pressupostos.

Embora cientificamente inadequado, já que o conceito não corresponde a nada que exista na natureza, a idéia de raça sobrevive como construção ideológica e cultural. Assim, não pode haver dúvida que o uso da expressão "raça" continua representando uma concepção social, política ou cultural, mesmo que nunca mais seu significado denote um produto da evolução natural da espécie humana. Pior do que a permanência de raça enquanto conceito, agora desprovido de seu conteúdo biologizante, é a inegável constatação do triste fato, que infelizmente expressa uma danosa deformidade de nossa civilização, o de que o racismo existe e continua fazendo vítimas diariamente.

Depois da divulgação de sucessivas pesquisas do IBGE e do Ipea, mostrando a situação desigual entre negros e brancos, agora a antiga proposição de que no Brasil o que existia era uma "democracia racial" já não se sustenta mais. Os defensores da tese do "racismo cordial" precisam de novos argumentos.

A afirmação, sempre progressista, de que não existem raças humanas, agora que está em discussão a adoção de políticas de ação afirmativa como iniciativa para minimizar a situação de exclusão, pela escravidão e pelas práticas racistas cotidianas, a que foram submetidos os negros e os índios — as maiores vítimas do uso tanto científico quanto ideológico da idéia de raça —, pode acabar assumindo as cores do reacionarismo se for utilizada como argumento contrário à institucionalização dessas medidas. O discurso, aparentemente sintonizado com as mais humanitárias teses do Iluminismo, de que a raça humana é uma só e que, portanto, não há sentido que uma parcela se beneficie de tratamento diferenciado, nesse momento só serve para erigir mais obstáculos à transformação dessa sociedade criando dificuldade para que ela se torne pelo menos um pouco mais justa, na medida que fornece argumento para que mudanças na nossa pirâmide social, mesmo mínimas, não sejam efetivadas e a melanina continue colorindo apenas a sua extensa base, deixando, convenientemente, intocado o estreito cume.

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