segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Sociabilidade Neoliberal - Primeiro e Segundo ano

Sociabilidade é uma expressão empregada na produção acadêmica em diferentes sentidos. Em geral, é relacionada às análises sobre os modos de viver e de ser em sociedade, em comunidades ou em pequenos grupos sociais. Historicamente, o conceito de sociabilidade vem sendo disputado por diferentes correntes de pensamento presentes no debate das ciências sociais.

Em autores clássicos encontramos importantes formulações que oferecem elementos para a compreensão do alcance teórico do conceito de sociabilidade e, de modo particular, do significado de sociabilidade neoliberal tão presente na atualidade.

As formulações de John Locke (1632 a 1704) representam um marco no pensamento político. Suas idéias serviram de base para as lutas da burguesia contra o absolutismo e mais tarde inspiraram a doutrina liberal, sobretudo em suas formulações sobre Estado. Em seus escritos políticos é possível localizar registros importantes para traçarmos a gênese do conceito em questão.

Para Locke todos os homens seriam iguais e independentes por natureza, ninguém poderia/deveria prejudicar ou ameaçar os 'direitos naturais' do outro, principalmente o 'direito natural' à propriedade, pois ela faria parte da constituição do próprio indivíduo, estando relacionada à condição de sobrevivência do ser e da humanidade. No pensamento lockeniano, liberdade e propriedade seriam, portanto, indissociáveis.

Para ele, a propriedade estaria ligada ao 'estado de natureza', teria surgido antes mesmo da sociedade. No pensamento lockeniano, a expansão da propriedade privada, mesmo criando a desigualdade entre os homens, não violaria o preceito da 'lei natural'. A teorização de Locke indica ainda que o modo de vida (sociabilidade) seria constituído para o individuo e pelo indivíduo (seres isolados e racionais) e, num segundo plano, pelo 'contrato social', ou seja, um acordo coletivo entre indivíduos para preservar os 'direitos naturais' de cada um, formando, assim, a sociedade e o Estado (centro de poder). Considerando que o indivíduo vem antes da sociedade, a delimitação da sociabilidade envolveria dois planos: no primeiro pelo individualismo; num segundo plano, pelo contrato social, cujo foco seria a preservação da propriedade.

A perspectiva liberal de sociabilidade foi tratada também por outro importante formulador político, Adam Smith (1723 a 1790). Em alguns de seus escritos encontramos outras referências para delimitar a gênese do conceito. Suas formulações não se restringiram ao contexto de sua época, ultrapassaram o tempo, inspirando ações políticas para afirmar um padrão capitalista de sociabilidade.

Para Smith, os homens organizariam o seu modo de vida em sociedade com base em preceitos naturalmente preestabelecidos pela ordem natural das coisas, reafirmando as idéias de Locke. Os indivíduos seriam regidos por uma racionalidade baseada em interesses privados e na busca incessante do lucro, de maneira egoísta, mas produtiva, cujas repercussões seriam positivas para todos. A associação entre indivíduos obedeceria a uma lei natural e necessária de obtenção ou preservação do lucro. A 'mão invisível' do mercado seria a força ordenadora das relações sociais e das condutas individuais. Para legitimar o individualismo, Smith defendia que o somatório dos esforços de cada indivíduo de uma sociedade representaria um resultado positivo para toda a sociedade, uma vez que haveria um aumento geral da riqueza beneficiando a todos, ainda que indiretamente e de forma desigual. Partindo do pressuposto de que a propriedade, a liberdade e a vida existiriam naturalmente antes da organização dos homens em sociedade, Smith acreditava que as regras e as condutas pessoais deveriam ser preservadas e incentivadas como referências para o perfeito funcionamento de qualquer sistema social. O interesse próprio seria o ponto fundamental do ordenamento das relações sociais, envolvendo trabalho e vida em todas as suas dimensões. A esse respeito Smith argumentava que:

Numa sociedade civilizada o homem necessita constantemente da ajuda e cooperação de uma imensidade de pessoas, e a sua vida mal chega para lhe permitir conquistar a amizade de um pequeno número. Em quase todas as outras espécies animais, cada indivíduo, ao atingir a maturidade, é inteiramente independente, e, no seu estado normal, não necessita da ajuda de qualquer outro ser vigente. Mas o homem necessita quase constantemente do auxílio dos seus congêneres e seria vão esperar obtê-lo somente da sua bondade. Terá maior probabilidade de alcançar o que deseja se conseguir interessar o egoísmo deles a seu favor e convencê-los de que terão vantagem em fazer aquilo que ele deles pretende. Quem quer que propõe a outro um acordo de qualquer espécie, propõe-se conseguir isso. Dá-me isso, que eu quero, e terás isto, que tu queres, é o significado de todas as propostas desse gênero; e é por esta forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos favores e serviços de que necessitamos. Não é da bondade do homem do talho, do cervejeiro ou do padeiro que podemos esperar o nosso jantar, mas da consideração em que eles têm o seu próprio interesse. Apelamos, não para a sua humanidade, mas para o egoísmo, e nunca lhes falamos das nossas necessidades, mas das vantagens deles. Ninguém, a não ser um mendigo, se permite depender essencialmente da bondade dos seus concidadãos. Até mesmo um mendigo não depende inteiramente dela. (1981, p. 94/95, grifo nosso).

Nessa lógica, o individualismo marcaria o modo de vida dos homens e mulheres, sendo a base do equilíbrio social e do funcionamento de toda a sociedade.

Um terceiro intelectual importante para a compreensão do conceito de sociabilidade no capitalismo foi Friedrich August von Hayek (1899 a 1992). Ao atualizar as idéias de Locke e Smith para o século XX e fundar o que foi denominado de neoliberalismo, Hayek definiu que o mercado, centro das relações sociais, e o individualismo, principal marca da ação humana, deveriam ser recuperados com toda ênfase no mundo contemporâneo.

Hayek defendia que o mercado asseguraria uma superioridade a qualquer tipo de regulação econômica e política e a qualquer instituição social, devendo servir de base para o ordenamento das sociedades e das condutas humanas. Isso possibilitaria que uma sociedade evitasse o massacre e o tolhimento do ser humano, permitindo, assim, a expansão de todas as potencialidades do ser.

Argumentava também que o individualismo não seria sinônimo de egoísmo e desconsideração com o outro. Em sua visão, o egoísmo seria uma qualidade humana ligada à própria dimensão da razão. Considerando que os indivíduos teriam uma capacidade limitada de absorver intelectualmente um conjunto de problemas, demandas e necessidades presentes no mundo, ou ainda de compreendê-los como uma totalidade, Hayek acreditava que não restaria outra opção a não ser valorizar a qualidade natural sem artificialismos. Nessa linha, os homens se organizariam em pequenos grupos para defender os interesses específicos e limitados, e nunca por interesses coletivos que pudessem representar mudanças substantivas na política e na economia. Na lógica hayekiana, os organismos sindicais e partidários de massa deveriam ser abolidos ou redefinidos, abandonando as bandeiras de lutas mais gerais.

A sociabilidade neoliberal proposta por Hayek abrangeria três aspectos essenciais que deveriam ser difundidos nos processos educativos escolares e não-escolares: o individualismo como valor moral radical, o empreendedorismo e a competitividade.

Embora essas idéias ainda permeiam o mundo de hoje, são as formulações de Anthony Giddens (1938 a...), em seu esforço para sistematizar o projeto da 'nova social-democracia' em nível mundial, que melhor traduzem a sociabilidade neoliberal no século XXI.

Considerando que a atual fase do capitalismo privilegia a 'libertação psicológica' dos indivíduos das pressões exercidas pelo mundo polarizado do passado e dos antagonismos entre capital-trabalho, o autor argumenta que o individualismo configura-se como um estilo de vida sem retorno e deve ser tomado como referência para recuperar a coesão cívica que teria entrado em crise com as políticas neoliberais de viés hayekiano.

A grande tarefa para educar a sociabilidade no século XXI seria a eliminação ou resignificação dos símbolos do passado, recriando, assim, a tradição. Para Giddens, o mundo continua reivindicando indivíduos empreendedores e competitivos, mas necessitaria também de indivíduos 'colaboradores'. Considerando que o Estado de bem-estar social e o Estado neoliberal, com sua ênfase no mercado, teriam gerado mais problemas do que soluções para a humanidade, ampliando tensões sociais graves, a saída seria para Giddens a criação de algo 'novo': a 'sociedade de bem-estar', sustentada pelo espírito empreendedor e voluntarioso dos novos tipos humanos.

Nesses termos, a sociabilidade neoliberal no século XXI incorpora as idéias de Locke, Smith e Hayek, e as atualiza com a idéia de cooperação ou colaboração social de caráter não-classista. Assim, em processos sociais moleculares, indivíduos em regime de cooperação, reunidos em pequenos grupos, atuariam solidariamente em defesa do 'bem-comum'. O resultado do processo seria a coesão cívica, algo positivo para cada indivíduo e para o conjunto da sociedade.

A sociabilidade neoliberal do século XXI (ou sociabilidade neoliberal da Terceira Via) é definida como a nova 'cidadania ativa', caracterizada pelo: empreendedorismo, competitividade, trabalho voluntário e colaboração social.

Numa perspectiva crítica, sociabilidade corresponde ao ‘conformismo social’ a que homens e mulheres são submetidos num determinado ordenamento político, econômico, social e cultural (Gramsci, 1999). Os seres humanos, coletivamente, produzem e reproduzem as condições objetivas e subjetivas de sua própria existência, portanto, não as recebem prontas da natureza. A produção da existência humana se desenvolve sob determinadas condições e por diferentes mediações em um dado contexto histórico. O ser humano é, portanto, o conjunto da natureza e da história, uma síntese das forças materiais e culturais presentes em um tempo (Gramsci, 1999; Marx & Engels, 1984).

A sociabilidade é uma construção histórica produzida coletivamente, envolvendo relações de poder e refletida em cada sujeito singular por diferentes mediações, expressando, assim, um ordenamento mais ou menos comum sobre as formas de sentir/pensar/agir. A sociabilidade neoliberal no século XXI indica que há um padrão predominante de percepções, pensamentos e comportamentos que deve ser seguido por todos que desejam ser considerados bons cidadãos e bons trabalhadores.

A sociabilidade neoliberal do século XXI vem permitindo que os sujeitos históricos entendam a exploração do capital sobre o trabalho como algo naturalmente constituído, que seu sucesso ou fracasso é unicamente decorrente do seu esforço (de sua capacidade empreendedora e competitiva) e que é possível promover o bem-comum com ações voluntárias, independentemente das condições socioeconômicas e das relações de poder existentes.

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